Caminhada

Sapatos na nuca
Saia amarrada
Embaraço de fios
passos marcados

Areia nos olhos
Pouca visão
Areia dos dedos
Roçando no chão

Cabelos ao vento
Cabeça no ar
Olhar esquecido
De tanto calar

Longa caminhada
Na areia molhada
Gotas da jornada
Na saia enrugada.

domingo, 25 de outubro de 2009

Vida promocional

Ulisses entrou porta adentro com cara de desespero. A noite havia sido um tanto conturbada. A nova namorada havia virado sua cabeça de vez. Uli se viu apontado por pensamentos sublimes de enlaces matrimoniais, filhos e uma bela casa e isso, definitivamente, não fazia parte de seus ideais de juventude. A posição nova lhe atacava o espírito de maneira confusa e arrebatadora.

Além disso, a nova posição obrigava uma retomada melhor em sua carreira, um novo salário, mais alto, angariar mesmo uma promoção. Seu salário de estagiário mal dava para o cinema de quarta, quanto menos para o sustento de uma família. Era algo a se pensar...

Os encontros foram reforçados pela vontade alienada de copular. Beijos, abraços, grandes passadas e nada de acontecer o drible final. A menina era meiga e pura, e guardava a grande tacada para as núpcias, sem dar abertura de furar o sinal.

Ulisses, pertubado, suado, cansado de insistir na acolhida viu como única alternativa consentir com o veredito e chamou todos à reunião famíliar. Enlaçados, os noivos bindaram a nova aliança e se fez algazarra geral. Uma festa foi marcada para o próximo maio, mês influente no calendário do ano e, com tudo perfeito, foi consumada as núpcias em um honesto lugar do Guarujá.

Ao voltar, Ulisses já satisfeito e feliz, voltou ao trabalho e conseguiu a tão sonhada promoção, graças ao seu esforço e sua nova posição social, de homem honesto, casado e futuro pai do primeiro filho.

E a primeira promoção se fez discreta e trouxe consigo uma casa modesta, roupas novas e uma mulher satisfeita e cheia de carinhos.

E a segunda promoção se fez modesta e trouxe consigo um carro, uma filha prendada e uma mulher gorduchinha e cheia de mimos.

E a terceira promoção se fez dispersa e trouxe consigo um carro para a esposa, a primeira viagem a negócios para NY no dia do nascimento do segundo filho, fins de semana no clube jogando tênis, uma nova casa, uma escola melhor para a filha, duas babás, uma esposa garbosa, cheia de unhas, massagens e cabeleireiros, com roupas de grife e cremes de estética.

E a quarta promoção se fez completa e trouxe consigo um carro importado, um Armani engomado, um contador picareta, uma viagem a Paris com a nova secretária gostosa, uma moto para a filha, uma viagem holandesa para o filho, uma esposa ciumenta, um carro batido, algumas doses de uísque, uns bons maços de cigarro, uma amante picante e um escritório com heliponto no alto do edifício.

E a quinta promoção se fez explosiva e trouxe consigo um rombo na conta, uma mulher neurótica, um filho drogado, uma filha grávida, um pedido de divórcio, outras doses e doses e doses de uísque, uns joguinhos com os amigos e uma internação no Albert Eistein com taquircadia crônica e uma suspeita de cancêr no pulmão.

E Ulisses, enfim, após quatro meses num quarto de hospital, começou a perder as promoções. E a falta de promoção trouxe consigo contas pendentes, a hipoteca da casa, a venda do carro importado, do helicóptero, o trabalho novo da filha, o esforço do filho, os carinhos e mimos da esposa traída, o retorno à casa modesta, às contas impressas, aos fins de semana de pizza, ao ônibus, à labuta do dia-a-dia e aos abraços e orações em família.

Mas o mais importante que Ulisses ganhou com a sua falta de promoção foi a certeza de que, como num coito interrompido, tudo às vezes é nada e nada, às vezes é tudo.

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