Caminhada

Sapatos na nuca
Saia amarrada
Embaraço de fios
passos marcados

Areia nos olhos
Pouca visão
Areia dos dedos
Roçando no chão

Cabelos ao vento
Cabeça no ar
Olhar esquecido
De tanto calar

Longa caminhada
Na areia molhada
Gotas da jornada
Na saia enrugada.

domingo, 4 de outubro de 2009

O reflexo

Eram seis da manhã e a rua já estava cheia de passos. Uns subindo, outros descendo. Os ombros se encostando em um leve afastar.

Entre os passos da esquerda, podia-se ver a sombra de uma pedra sendo ferida amargamente por um pedaço de ferro, que num constante, martelava a imagem que se espelhava nos olhos de All, um homem pequeno, mas forte. De suas juntas brotavam coágulos rubros, sua vista cumpria o exercício diário de se fechar a cada martelada, a cada pontada que a pedra insistia em causar em sua dor. Mas a vontade de ver o reflexo completo era intensa, tão intensa quanto a força que fazia para manter as pernas por tanto tempo encurvadas, sustentando seus 75 quilos.

O sol se pôs às 18:30h. Como de costume, All levantou devagar, quase sem respirar, para tomar seu café frio, ali deixado por seu filho, há 3 horas passadas. Já fazia uma semana e ainda tinha muito por terminar, mas só All sabia a sensação de olhar para o reflexo pronto.

E assim se foram os 45 dias. Com todas as honras, o prefeito foi em festa, dar boas-vindas àquela nova criatura que nasceu na praça XII. All ficou ali, logo atrás da multidão, fazendo vivas ao criador daquela obra. Seus aplausos eram suaves, enrolados em faixas limpas e brancas, que escondiam os anos de trabalho numa artrite já avançada.

Dadas honras aos prefeitos, arquitetos e vereadores, os passos acompanhavam com pressa os afazeres do dia. Os olhos passavam por aquele homem baixo, de olhar brilhante, como se fosse invisível. Apenas uma garotinha notou a lágrima de felicidade que rolou naquela pele enrugada, mas seus superiores já trataram de fazê-la não notar mais, chamando sua atenção.

E todo mundo passou e até falou: Saia da frente! Mas All só ria e se emocionava, com o reflexo de seus olhos e enchia de ar os pulmões. Ainda deu a última olhada saudosa, porém satisfeita e foi em direção a sua casa, aquela na qual passaria seus anos restantes.

Nesse exato momento, a garotinha vai com seus passos pela praça e pára um breve momento diante do reflexo de seus olhos, o mesmo reflexo que All teve há 20 anos atrás. Não se lembra daquela lágrima mas sente o ar se mover nos pulmões.

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