Por Joyce Baena.
Muitas vezes quando se é jovem, ficamos inseguros sobre a
real qualidade de nossas capacidades e por vezes, deixamos que o outro nos faça
acreditar no que ele deseja que acreditemos. E a realidade criada pode nos
deixar muito mal. Foi o que aconteceu comigo aos 26 anos e só me dei conta
quando descobri que estava com uma úlcera.
Era dezembro de 2.000 e aos 25 anos, eu já tinha uma bela
bagagem profissional. Tinha feito faculdade de comunicação em São Paulo, voltei
pra Porto Velho onde minha mãe morava e lá, tinha dirigido equipes de filmagem
com mais de 100 pessoas, criado diversas campanhas de sucesso, era redatora
reconhecida no mercado. Mas uma coisa era trabalhar numa cidade no interior do
Brasil, outra coisa era realizar o sonho de trabalhar em uma grande agência de
propaganda em São Paulo.
Com muita luta e força de vontade, entrei numa das gigantes
do mercado publicitário paulista. Minha chefe nova era uma mulher bonita, única
vice-presidente entre outros vários vice-presidentes e presidente, todos homens. Ela tinha um ano a mais do que eu, andava sempre impecável. Eu
nunca vi ela sem estar montada no salto 10 ou com um fio de cabelo fora do
lugar. Nem na agência, nem nas festas de fim de ano na beira da piscina.
Minha chefe era firme, competente, extremamente
perfeccionista e algumas vezes, cruel.
Eu era uma menina vinda de Rondônia, não falava inglês, sem
pós-graduação, criativa, empolgada, com o grande sonho de aprender com quem
sabia de verdade. Ela nasceu milionária, tinha tudo nas mãos e não
media esforços para conseguir o que queria.
Era uma combinação perfeita: ela queria controlar e eu queria e "precisava" muito daquele emprego.
Quando comecei a trabalhar com ela, 2 meses depois recebi um
aumento de 2x o salário que pedi no início. Fiz uma apresentação que foi para
outros países, elogiada por todos os sócios das outras agências do grupo e pelo
cliente. Tinha feito algo inédito, misturar Photoshop com Corel e PPT. Ninguém
nunca tinha feito apresentação desse jeito. Vendo que ali tinha espaço para criar, me entreguei de corpo
e alma para o trabalho. Tudo o que ela
pedia, inclusive as coisas que pareciam impossíveis no tempo existente, eu dava
um jeito de conseguir. Virava noite, não ia ao banheiro, comia sobre a mesa de
trabalho mas resolvia.
Eu entrava na agência as 9h em ponto todo dia. Qualquer
minuto de atraso era motivo de cara feia o dia todo. Portanto, eu chegava mais
cedo e saia bem tarde. Mas mesmo saindo na madruga, 9h eu estava lá.
Cheguei num momento em que meu café da manhã era Coca-Cola e
cigarro pra aguentar o tranco. Na madrugada chegava a fumar um maço inteiro.
Era como eu me mantinha desperta. Cada detalhe era importante. E por mais que eu me esforçasse
minha chefe nunca estava satisfeita.
Eu fazia de tudo para agradá-la, montava apresentações
impecáveis de 150 slides em 2 dias e no final, ela pedia para imprimir os
slides e me devolvia dizendo: tem erro e não dizia onde. Depois de horas quase vomitando de nervoso em cima do
documento eu achava uma vírgula fora do lugar. O erro era esse, juro, e ela
confirmava.
Eu chorava no banheiro, me sentia humilhada, um lixo, burra. E ela me mostrava, as vezes de maneira cruel que ela me
fazia um favor por me dar esse emprego. Quando eu fazia apresentações
incríveis, ela me elogiava e eu esperava ansiosamente esse elogio, mas depois, algumas pessoas que participavam da reunião diziam que ela ganhava todos os louros do trabalho e me diziam isso, chocadas com essa
atitude dela.
- Como você aguenta trabalhar com ela? Sai fora!
Cansei de ouvir isso de muita gente. Amigos queridos entravam
e saiam da agência, não aguentavam trabalhar com ela. Mas eu continuava lá. Eu
realmente acreditei que não conseguiria outro emprego.
Quando eu estava muito triste ela fazia um elogio para me
motivar. Se eu ia para o hospital com uma crise de gastrite, que se tornou algo
comum, ela cuidava de mim como uma mãe. Era uma relação de amor e ódio. Mas eu
sempre acreditava que tudo podia melhorar e continuava.
A questão é que eu precisava muito do trabalho, tinha uma
filha de 4 anos, um marido desempregado, contas a pagar. E eu gostava do que
fazia, não queria fazer outra coisa e morria de medo de ficar desempregada.
Chegou um momento que minha autoestima estava em frangalhos,
eu estava cansada, exausta. Me vi com 20 quilos a mais, me achava horrível, meu
casamento estava indo de mal a pior, minha filha tinha que morar com a minha
sogra durante a semana porque eu nunca estava em casa. Aguentei firme mas
quando descobri que estava com uma úlcera resolvi mudar as coisas.
Na frente da agência tinha um centro espírita. Resolvi bater
lá e descobri que eles tinham um programa de terapia gratuita. Resolvi me
inscrever: você escolhia um único assunto e tratava em 12 sessões. Então, ok. Vamos
tratar a relação com a chefe.
Foram muitas conversas. Comecei a ver que o problema não era
ela e sim eu mesma. Eu não me posicionava, não valorizava meus talentos. Passei
a perceber que ela fazia tudo aquilo comigo por algum tipo de insegurança e que a atitude de mudança tinha que ser minha. E durante as sessões, eu fui mudando minha postura.
Cheguei pra ela um dia e falei que estava assumindo um
compromisso. Informei os horários que não poderia ficar na agência mas que iria
me organizar para atender bem os trabalhos. Comecei a comer direito, parei de
dizer sim pra tudo. Quando dizia não, explicava porque não dava pra fazer com
clareza. Não foi fácil, foi um esforço enorme mas ela entendia a situação.
Comecei a fazer academia, fazia aula de boxe e jogava toda a
minha raiva no saco. Isso me acalmava no dia-a-dia.
Depois de umas 8 sessões de terapia, lembro que estava um dia
até tarde trabalhando quando ela parou e me olhou:
- O que você está fazendo?
- Como?
- O que você está fazendo? Você está diferente, mais confiante, mais bonita. Estou até querendo confiar trabalhos mais importantes para você.
Eu contei que estava fazendo terapia, comecei academia,
estava organizando melhor minha vida.
- Que bom. Está te fazendo bem.
E a coisa mudou. Tomei coragem e disse a ela como me sentia.
Falei que precisava ser reconhecida, que precisava do apoio dela. Que eu
gostava muito de trabalhar ali mas que era fundamental que estivéssemos juntas
no trabalho. Ela passou a me respeitar mais, olhar nos meus olhos, me
ouvir, pedir minha opinião, elogiar mais.
Um dia o presidente da agência entrou na sala. O cara era um
Deus, não falava com ninguém:
- Loirinha, vim aqui pra dizer que a apresentação pra Coca-Cola que você fez estava mais bonita que a campanha criada pelo nosso diretor de criação.
O planejamento inteiro da agência bateu palmas. O Diretor de
Criação estava junto, sorrindo e piscando pra mim. Fiquei roxa. Ele saiu da sala, eu estava explodindo de alegria afinal me
dedicava com todo o carinho no trabalho.
Ela entrou em seguida e falou na frente de todos:
- Viu como te reconheço? Pedi pra ele vir aqui falar com você.
Enfim... era como ela sabia fazer.
Mas no fim das contas a vida é assim mesmo, passei 7 anos ao
lado dessa mulher. Cresci horrores, aprendi na dor, no amor mas não desisti.
Quando resolvi sair da agência para montar o meu negócio, ela tinha acabado de
perder a mãe. Me disse: - Estou perdendo
2 pessoas muito importantes na minha vida. Mas você precisa voar, está na sua
hora. Não posso competir com seus sonhos.
Chorei um monte. Foi difícil. Agradeço todos os dias por ter
passado por isso e ter vencido meus monstros. O fato de não ter desistido mesmo
com todas as dificuldades me fizeram ser quem sou hoje. Peguei as coisas ruins
para nunca repetir com meus funcionários. Peguei as coisas boas pra usar pra
sempre.
Tenho vários aprendizados dessa história.
O primeiro deles: nunca deixe ninguém te dizer que não é
capaz.
Olhe para você e vença seus monstros, você é seu maior inimigo. E muitas
vezes é preciso pedir ajuda e estar aberto pra aprender.
O segundo: temos que nos unir, nós, mulheres.
A minha geração nasceu com o estigma de que os homens eram
melhores em tudo. Que não precisavam ajudar em casa, que tinham os melhores
cargos nas empresas. Meus irmãos e primos eram tratados como Deuzinhos em casa.
Não lavavam louça, não limpavam a casa, eram servidos na mesa. Minha mãe se separou quando eu tinha 5 anos, perdeu o
emprego, foi advogar em porta de cadeia pra sustentar a gente porque meu pai a
abandonou. Sempre dizia: - filha, nunca
dependa de ninguém, sempre faça o seu ganha pão. Homem nenhum vai te ajudar.
Lá no fundo somos um poço de emoções que oscilam todo mês,
entre nossos períodos menstruais. Só que para parecer competente, pra parecer
forte anulamos nosso feminino e criamos um carrasco dentro de nós. Eu fiz isso.
Queria controlar tudo assim como minha chefe fazia e nosso inspiração eram os
homens: frios, calculistas, focados em resultados.
No fim das contas, ela, eu e uma grande parte das mulheres, somos reféns da cultura que vivemos. Deixamos o cuidado, o carinho, o maternal de lado e o pior de
tudo isso, olhamos as outras mulheres como nossas inimigas, como nossas rivais.
Eu venci, virei a chave. A minha chefe foi uma escola, ela
cresceu comigo nesse processo, também se lapidou, também está melhor e mais
feliz. Sem querer, ela me ensinou a ter mais empatia. Só quando consegui
entender ela é que comecei a me entender.