Minha morte em vida aconteceu numa sexta-feira 13 em algum lugar ao sul do estado da Bahia, no Brasil.
Passei mal na noite anterior. Breves calafrios foram se acentuando ao longo do dia. Fiz um passeio de barco com meus amigos e após um almoço delicioso, porém, acompanhado de muitas dores nas juntas, enfim, cheguei na casa de praia, tomei um banho e resolvi deitar.
Quando o sol já se punha, senti meu corpo mais leve e fiquei feliz, a dor tinha passado. Que bom que nem precisei ir atrás do médico da vila. Sentei na cama, me espreguicei como habitualmente faço todas as manhãs e fui ver como estavam os outros.
Meu marido e 2 amigos jogavam baralho na varanda. Me sentei e fiquei longos minutos a observar. Ainda um pouco tonta não emiti som algum, apenas olhei minha cachorrinha que me abanou o rabo como sempre.
Minha filha e minha amiga chegaram da ida ao mercado para comprar detergente. Passaram direto por mim e, de repente, minha filha gritou: MAEEEEE!!!
Saí correndo em direção ao quarto e qual não foi o meu susto quando me vi, petrificada sob a cama, como se eu houvesse me desdobrado em duas.
Para qualquer ser humano mais leigo, tudo poderia parecer loucura, porém, meus longos estudos sobre a espiritualidade e suas características me colocaram em posição de, pelo menos, saber o que estava acontecendo.
Sentei ao lado da minha filha, passei as mãos em seus cabelos e enxuguei suas lágrimas que começavam a encharcar seu rostinho angelical.
Minha experiência dizia: não há saída, meu tempo com aquele corpo havia se esgotado.
Uma leve brisa bateu em meu coração nesse momento e senti uma tristeza profunda de perceber quanto tempo desperdiçado com tolices, com quimeras materiais e brigas inúteis. Nessas horas você sente a vida escorregando como areia pelos dedos, deixando apenas grãos que serão levados pelo tempo.
A luz do quarto estava diferente, eu podia ver um leve clarão se apossar do ambiente e com o canto dos olhos pude vislumbrar uma figura antiga, muito querida vindo em minha direção.
Por muitas vezes ouvi dizer que no momento derradeiro, quando há merecimento, somos recebidos por entes queridos. Algo de bom eu devo ter feito para ser recebida pelo avozinho querido. Então, uma ponta de esperança se abriu em meu coração, um abraço afetuoso me embalou e, com lágrimas nos olhos, avistei mais uma vez minha pequena família, meus amigos queridos, todos ao meu redor e totalmente desprovidos da minha visão, sem ideia do que pudesse estar acontecendo do lado de cá.
Num misto de tristeza e de esperança aceitei o novo caminho que se abria a minha frente e segui com o avozinho para o desconhecido. Em meu ser eu queria ficar, voltar atrás, entrar novamente em meu corpo e abraçar minha filha. Mas em meu mais profundo ser, eu sabia que tudo já estava certo, traçado e combinado e que, a partir de agora, uma nova experiência me aguardava, uma nova fase para a evolução do meu espírito.
Não tenho ao certo o que vem por aí, se o esquecimento completo ou a clareza dos fatos. É como a roupa que precisa ser lavada porque simplesmente está suja. Pode ser no tanque, na máquina ou na mão, não importa como, mas tem que lavar.
Já ouvi dizer que tudo vem de acordo com o que é necessário para cada um. Talvez o esquecimento seja um conforto, mas saber dos fatos, se eu estiver preparada, pode me ajudar a entender melhor meus atos falhos.
Talvez eu não sinta essa tristeza que sinto agora por muito tempo. Talvez, depois de um tempo, a saudade tome seu caminho e a esperança do reencontro evapore os últimos resquícios de melancolia.
Mais uma vez, morrer significa o novo sol que nasce, um novo começo para aprender mais, para lapidar o diamante bruto que somos nós.
Entender e aceitar é talvez a parte mais difícil de todo o processo. Tal qual um alcoólatra assumido, nessa hora senti todos os sintomas das doenças que carreguei durante essa vida.
A dificuldade emocional de amar talvez seja a maior delas.
Como foi difícil amar, como foi difícil me deixar ser amada. Já tive consciência disso em carne, mas, deixar a vida cedo assim elimina a oportunidade de, nessa existência, com essas pessoas, trabalhar o amor.
Mas como tudo acontece como tem que ser, talvez minha função nessa vida seja tomar conhecimento disso para trabalhar a partir de agora, afinal, temos toda a eternidade para melhorar o que é preciso. Com certeza vou fazer de tudo para continuar daqui em diante e aperfeiçoar o amar que existe em mim.
Deixo em meu legado a minha filha, meu marido, meus poucos mas verdadeiros amigos, minha cachorrinha, minha mãe e meus irmãos, deixo uma ponta de lembrança que espero poder perpetuar pelas várias existências.
Como uma grande comunidade de irmãos sedentos de amor, precisamos nos aprimorar, amar, respeitar. Precisamos valorizar o que temos de bom e apagar de nossas vidas os defeitos, as maldades, egoísmos e orgulhos.
Somos nada, somos ninguém diante da imensidão do universo, mas ao mesmo tempo, somos o ser mais importante da nossa própria eternidade.
Se não fizermos algo por nós, ninguém será capaz de fazer. Somos responsáveis por nossos atos, responsáveis por nosso tempo dentro da eternidade. Somos donos do bom emprego de nossas capacidades.
Ninguém irá pagar a conta do que comemos. Somos os donos da fome, mas também do esforço que se faz para saciar essa fome.
Obrigada pela oportunidade, meu Pai. Fiz mal uso, fiz bom uso, fiz o que podia dentro dos meus limites. O importante é que estou vendo melhor agora do que quando parti, afinal, é sempre assim que acontece, não é mesmo?